Nesta sexta-feira (06/06), quando o país marca o Dia Nacional do Teste do Pezinho, o clima não é de celebração. Apesar dos avanços previstos na legislação e da promessa de ampliar a triagem neonatal para mais doenças, diversos estados brasileiros enfrentam paralisações ou atrasos na realização do exame por falta de insumos básicos. O impacto é direto: crianças deixam de receber diagnósticos essenciais nos primeiros dias de vida, o que pode comprometer tratamentos precoces e até colocar vidas em risco.
Em alguns estados, como o Maranhão, os problemas começaram ainda no final de 2024. Segundo a Secretaria de Estado da Saúde, a escassez de reagentes — atribuída a dificuldades na importação — tem atrasado a análise das amostras colhidas nos recém-nascidos. Relatos apontam que a situação se repete em ao menos cinco estados, embora o Ministério da Saúde afirme não ter sido notificado oficialmente por nenhuma unidade da federação sobre interrupções no serviço.
Diagnóstico precoce ameaçado
O teste do pezinho é um exame de triagem obrigatório, realizado entre o 3º e o 5º dia de vida do bebê, que pode detectar doenças metabólicas, genéticas e infecciosas antes mesmo do surgimento de sintomas. Atualmente, a versão básica oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) detecta sete enfermidades, como hipotireoidismo congênito e doença falciforme. A meta, estabelecida pela Lei nº 14.154/2021, é ampliar progressivamente esse número para incluir condições mais complexas e raras, como imunodeficiências primárias e atrofia muscular espinhal (AME).
Contudo, segundo a médica geneticista Carolina Fischinger, presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo (SBTEIM), o país está longe de cumprir esse objetivo. “A triagem neonatal não é só um exame, é um programa de saúde pública que envolve coleta, confirmação diagnóstica, tratamento e acompanhamento. E temos falhas em todas essas etapas”, alerta.
Avanços desiguais e desafios técnicos
Enquanto estados como o Distrito Federal já realizam triagens para mais de 60 doenças na rede pública, a maior parte do país ainda oferece apenas a cobertura básica — quando oferece. Em muitas regiões, a coleta nem sempre acontece no prazo ideal, e há casos em que as amostras sequer chegam aos laboratórios por falta de transporte adequado.
“Um dos grandes entraves é a tecnologia. Os equipamentos necessários para detectar doenças raras são caríssimos — podem chegar a US$ 400 mil — e exigem técnicos altamente capacitados”, explica Fischinger. A estrutura desigual entre os estados faz com que algumas unidades federativas dependam do envio das amostras para laboratórios distantes, elevando os custos e aumentando o tempo de espera.
Durante a pandemia, o envio de amostras via Sedex — por meio de uma parceria com os Correios — ajudou a mitigar o problema, mas o alto custo logístico tem dificultado a manutenção da medida em estados com orçamentos mais restritos.
SUS realiza 80% das triagens, mas cobertura é insuficiente
Hoje, cerca de 80% dos exames são realizados pelo SUS. A rede privada, por outro lado, já oferece versões expandidas do teste do pezinho que detectam mais de 100 doenças — um reflexo da desigualdade no acesso à saúde diagnóstica.
A neonatologista Thaiany Benito, professora de Medicina da Faculdade Santa Marcelina (SP), reforça que o diagnóstico precoce pode mudar completamente a trajetória de vida de uma criança. “Doenças como a imunodeficiência primária ou a AME precisam de tratamento imediato. Se não identificadas a tempo, podem evoluir para quadros irreversíveis, como infecções graves ou insuficiência respiratória.”
Outro gargalo está na oferta de tratamento. Mesmo quando o diagnóstico é feito, há regiões onde não há medicamentos disponíveis ou acompanhamento especializado. “Não basta diagnosticar. É preciso garantir cuidado contínuo e integral”, defende Benito.
Ministério da Saúde responsabiliza estados
Em nota enviada à imprensa, o Ministério da Saúde declarou não ter recebido notificações formais sobre falta de insumos ou interrupção na realização do exame em nenhuma unidade federativa. Segundo o órgão, cabe aos estados adquirir os reagentes e organizar o funcionamento das triagens. Caso enfrentem dificuldades, as secretarias devem formalizar pedidos de apoio para que o governo federal avalie soluções, como realocação de recursos.
A SBTEIM, por sua vez, critica a falta de transparência. De acordo com a entidade, o Ministério da Saúde não atualiza os dados nacionais da triagem neonatal desde 2020 — o que compromete qualquer planejamento de políticas públicas efetivas na área.
Um programa vital, mas em colapso silencioso
O teste do pezinho é uma das mais importantes ferramentas de prevenção em saúde infantil. Ele permite que doenças silenciosas sejam detectadas antes que causem danos permanentes. Ainda assim, a fragilidade da estrutura nacional para garantir sua realização expõe um cenário preocupante de negligência e desigualdade.
Fonte: Metrópoles