Um marco sem precedentes na medicina genética foi alcançado nos Estados Unidos: KJ Muldoon, um bebê de quase dez meses, tornou-se o primeiro paciente do mundo a receber uma terapia personalizada com a tecnologia CRISPR, desenvolvida exclusivamente para corrigir a mutação genética que causava sua doença rara. O procedimento, considerado inovador, foi publicado nesta quinta-feira (15/05) na prestigiada revista New England Journal of Medicine.
KJ nasceu em Clifton Heights, na Pensilvânia, com uma condição hereditária extremamente rara chamada deficiência de carbamoil-fosfato sintetase 1 (CPS1), que compromete o ciclo da ureia — processo responsável por eliminar o excesso de nitrogênio do corpo. Sem a enzima necessária, o organismo do bebê acumulava amônia no sangue, substância tóxica que pode causar danos cerebrais severos e levar à morte.
A taxa de mortalidade infantil nos casos mais graves da doença ultrapassa os 50%, e o tratamento mais comum é o transplante de fígado, procedimento para o qual KJ ainda não era elegível. Diante da gravidade do quadro, uma equipe do Hospital Infantil da Filadélfia propôs à família um tratamento experimental, desenvolvido sob medida para ele.
DNA corrigido com “lápis genético”
A técnica utilizada foi uma variação da CRISPR chamada edição de base (base editing), que permite alterar uma única “letra” do código genético sem cortar o DNA, reduzindo riscos. O método atua como um “lápis corretivo”, substituindo o erro genético com precisão.
O material genético corrigido foi inserido em nanopartículas lipídicas e direcionado ao fígado, onde ocorre a síntese da enzima CPS1. Antes de chegar ao paciente, a terapia foi testada em laboratório, em camundongos e primatas. Dada a urgência do caso, a FDA — agência reguladora norte-americana — concedeu autorização acelerada para o uso.
KJ recebeu três doses da terapia. A resposta foi imediata: após a primeira aplicação, ele passou a tolerar melhor alimentos com proteína, sem aumento nos níveis de amônia no sangue. Com as doses seguintes, os médicos conseguiram reduzir gradualmente a medicação.
Futuro da medicina de precisão
Embora essa terapia tenha sido desenvolvida exclusivamente para KJ e não possa ser aplicada em outras pessoas, o caso é visto como um divisor de águas na medicina personalizada. A experiência abre caminho para o desenvolvimento de tratamentos semelhantes para pacientes com doenças ultrarraras que hoje não têm nenhuma opção terapêutica.
“Esse caso é um marco. Mostra que é possível criar terapias sob medida para corrigir mutações específicas, com segurança e eficácia”, afirma Bruno Solano, pesquisador em terapia celular e genética da Fiocruz e do IDOR. “Com o avanço das técnicas e a regulação apropriada, o futuro da medicina será cada vez mais personalizado, acessível e preciso”, completa.